(som de
Blackbirds,
ao fundo. O quarto exala incenso. Almofadas, roupas pelo
chão. Livros e pratos sujos em cima da mesa. Um casal. Uma mulher
jovem e o um homem velho. Nus, deitados sobre dois colchões. Ele
a abraça por trás, de conchinha. Acabam de fazer amor. Ele,
ofegante fala ao seu ouvido...)
- Escute.
Deixa eu te dizer o que sinto. Tenho a percepção que não estamos
mais juntos trocando livros de Shelley
e dos românticos ingleses sobre a calçada. Conheci e amei JohnDonne dentro de tí...te ver com o sorriso aberto e sentir teus
abraços tendo como testemunha o amor fingido, isto é, meu ciume
que ainda não tratei e não quero tratar...olhe! As pessoas caminham
apressadas, pressionadas e o teu sorriso no primeiro plano fez com
que tudo ficasse suspenso na atmosfera, como antigamente nossos beijos
faziam. Assim alimentamos esperanças. Sim, há como saber o que vai
acontecer daqui a pouco.
(ela
tenta se virar, mas ele a impede)
- Escute!
Hoje fiquei isolado e doeu. Minhas escolhas me transformaram no
peregrino que não quero ser. Amar me protege do veneno do capital e
dos valores religiosos que docilizam o corpo. Não! Minha solidão
dentro panóptico
é feita da consciência cruel de que eu fui o responsável pelo
espetáculo do artista da fome do Kafka.
Ainda por cima me orgulho da capacidade que me levará ao ostracismo
misantrópico, isto é, amar o prazer de sofrer. Nem sempre fui
assim. Lembro da minha vida feita de atos de heroísmo, de animais
que falavam comigo e de um guarda-chuva mágico que me levava a
qualquer lugar. Amava meus irmãos com a plenitude de um sol e mesmo
assim eles não entenderam. O sol foi eclipsado pela humilhação,
pela cobrança em crescer e de me tornar um deles. Algo me salvou,
algo me levantou, algo me fez sair de casa para morar em pensões
desde os 11 anos. Neste meio tempo passei por dois casamentos e
deixei três filhos para este mundo. Desejo que apreciem sua estada
nele, desejo que leiam WaltWhitman...
(ela
tenta se virar e consegue. Olha direto nos olhos dele. Ela fala.)
- Olhe nos meus olhos, tenha paciência. Submeter, para mim, é estratégia para
obter algo. Não! Não aquele reconhecimento de algo que há no
outro, que mereça submissão e obediência, não. Este tipo é
vulgar, covarde, que se alimenta da carne podre dos animais de quatro
patas rachadas da qual fala a História daquele povo e que nunca provou nada a
respeito do ser superior. Isto é produto
essencial da fantasia oportunista do processo de
evolução darwinista...
(ele
fala)
então ?
irás continuar com esta baboseira de deus e santos ou qualquer coisa
virtual que não pode ser provada ?
(ela ri)
Teimoso
insistente. Apenas me sinta e me ame. Construa a realidade comigo,
agora. Em mim e comigo vives a experiência dividida, compartilhada,
que amplia tua percepção e te tira da solidão. Venha, me beije,
seja meu homem e assuma a humanidade que há em você. O animal
precisa voltar a sua origem e dar lugar a criança.
(ele
resmunga...)
(ela cala
a ladainha com um beijo molhado e desejoso)
...hum..apenas
seja...
(som ao
fundo de JorgeDrexler.)
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